Somos, fomos e seremos, no fundo de nós mesmos, inexplicáveis. E também imprevisíveis: já que a razão não nos decifra, já que os conceitos não nos enquadram, como poderíamos quantificar a nós mesmos?
E é nessa incapacidade de prever, de explicar ou de controlar nossa própria estadia sobre a Terra que Kierkegaard baseia seu conceito de angústia.
Segundo Kierkegaard, a agústia é o fruto estonteante da liberdade humana.
Parece contraditório a primeira vista, mas o filósofo acreditava apaixonantemente em Deus, porém também afirmava que sua existência não podia ser comprovada pela razão. A divindade de Kierkegaard estava além da inteligência humana - e de nada adiantaria recorrer a Ele em busca de dicas ou soluções para nossos dilemas. Nesse sentido, o livre-arbítrio do ser humano é absoluto e inviolável: Deus jamais interfere em um único ato de suas criaturas, por mais desastrosas que venham a ser suas conseqüências.
A angústia é, precisamente, a consciência dessa liberdade sem freios, sem bordas e sem qualquer segurança - a tontura diante do abismo de possibilidades que se abre diante de nós a cada segundo.
A sabedoria existencial está em aceitar nossa insegurança como a outra face de nossa liberdade - uma espécie de barganha tácita entre Deus e suas criaturas.
(Qualquer reclamação é só ir ao procon cósmico!)
Condenado a dar saltos no escuro, o homem tem de assumir plena responsabilidade pelos inevitáveis erros de sua frágil inteligência.
(Trechos do artigo "O tremor", da Revista Vida simples Agosto/2010)
quinta-feira, 22 de julho de 2010
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De fato, somos imprevisíveis e inexplicáveis. Basta pensar nos modelos microeconômicos de análise do consumidor (portanto, do ser humano individual e coletivamente considerado), das curvas de indiferenças, níveis de utilidade e restrições orçamentárias, dos pontos de maximização da satisfação do consumidor baseados em cestas de consumos de acordo com preferências equivalentes... Conceitos fantásticos criados durante anos de desenvolvimento por mentes brilhantes e personalidades geniais, tudo racional e matematicamente comprovável, até chegarmos nas ressalvas dos próprios manuais de Economia: são meras simplificações, e na maior parte dos casos - especialmente no estudo do consumidor individualmente considerado -, mesmo essas simplificações sequer podem ser calculadas. E, como todo modelo, baseado em situações-padrão, essas simplificações funcionam até o momento em que ocorra o "ponto fora da curva". Aí tudo explode! :-)
ResponderExcluirA angústia que Kierkegaard descreve é a origem do fato de não sermos quantificáveis e previsíveis. É, de certa forma, o "ponto fora da curva" do comportamento humano.
Interessante notar que ele já se havia dado conta disso na primeira metade do séc. XIX. Depois disso, a humanidade ainda viveu a doce ilusão da civilização e do progresso inevitável durante toda a Belle Époque e o "fin de siècle". Só que essa angústia, quando não contida - o reverso da liberdade, como expõe o texto - pode ser como a abertura da caixa de Pandora. Exemplo claro disso são os muitos horrores da Primeira Guerra Mundial, que acabaram, de forma chocante, com essa doce ilusão coletiva.
A resposta a isso veio com Edward Bernays e Anna Freud e o desenvolvimento da sociedade de massas capitalista e consumista. O consumismo e a sede por mais e mais bens - em uma verdadeira corrida fútil e inútil - serviria, de certa forma, como fonte de entorpecimento da capacidade de reflexão humana, que pode ser muito perigosa, ao ser capaz de desencadear a angústia, da qual podem surgir poderosas forças desagregadoras do comportamento do "pai de família" ou do "homem ideal" (mães e mulheres também, é claro!), que podem levar à guerra civil, à barbárie e ao caos total.
É interessante notar que tudo que os poucos movimentos de contestação social dessa dinâmica (refiro-me, especificamente, ao movimento beanik e aos hippies) conseguiram fazer foi gerar, de certa forma, uma reação do próprio "sistema", ao serem integrados e desmantelados pela própria sociedade de massas. Hoje, em meio à revolução técnico-científica e com o incrível desenvolvimento das tecnologias da informação e comunicação, os pólos de opinião foram multiplicados como nunca antes visto, e isso implica na pulverização das opiniões individuais. Parece, às vezes, que o torpor das pessoas, a insensibilidade a tudo, só aumenta! Os movimentos de contra-cultura são efêmeros, quase instantâneos, sendo engolidos pelo "sistema" e incorporados por ele, em uma espécie de antropofagia pós-moderna...
A negação a essa insegurança, que é inerente à nossa condição humana - essa "barganha tácita entre Deus e suas criaturas", como diz o texto - pode funcionar para muitos e por muito tempo. Mas, em meio a esse torpor que vivemos, levados a uma busca incessante - e, ao final, sempre infrutífera - pelo pote de ouro no final do arco-íris, a angústia de que falava Kierkegaard continua lá. Só que, se ela se manifestar, já temos uma solução: basta tomar antidepressivos, que é quase o soma que Huxley descreveu ("..there is always soma, delicious soma, half a gramme for a half-holiday, a gramme for a week-end, two grammes for a trip to the gorgeous East, three for a dark eternity on the moon...").
Quase porque falta pouco, mas estamos, aos poucos, chegando lá...
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ResponderExcluirSorry, Gabi! Acabei fazendo uma zona no teu blog. :-)
ResponderExcluirPrimeiro, digitei tudo e quando fui postar, deu erro e perdi o que tinha escrito.
Aí digitei uma segunda vez, no Word, e quando tentei postar, deu erro. Aí postei em três partes, mas então vi que a segunda tentativa tinha funcionado, apesar do erro. Então apaguei os textos duplicados.
Essa tecnologia... (rs)
Amei o teu texto, a tua cronologia.
ResponderExcluir"O consumismo e a sede por mais e mais bens (...) fonte de entorpecimento da capacidade de reflexão humana, que pode ser muito perigosa, ao ser capaz de desencadear a angústia"... e vice versa, a angústia (o vazio existencial ou a falta de amor) ser capaz de desencadear o consumismo, esperando que o nosso vazio seja preenchido por bens e mais bens e projetando a nossa felicidade em coisas fúteis e inúteis, como você falou. (Talvez seja por isso que eu ando me questionando tanto sobre a liberdade, pois tenho oscilado muito entre lampejos de liberdade e muita angústia).
Outra parte em que você fala sobre "os pólos de opinião foram multiplicados como nunca antes visto (...)" Acho que o filósofo também se preocupava muito com isto, afinal, ao longo dos tempos essa maneira de pensar gerou os grandes sistemas em que a existência individual, de cada ser em particular, se dilui no que ele chama de generalizaçao. Neste sentido, ele questiona o que realmente importava: a essência do todo ("essencialismo") ou a existência de cada ser em particular. Faz sentido?
Infelizmente, acho que eu estou presa nesta roda da vida, e é triste que a única solução seja os antidepressivos. Porém, espero que isto não entorpeça minha capacidade de reflexão, pois aí sim vou ter perdido totalmente a minha existência (ou a minha essência???) Com tudo o que ela tem de única, imprevisível e inexplicável.
Como eu coloquei no texto, acho que eu vou ter que ir no Procon Cósmico!
Beijos e novamente, muito obrigada pelos teus comentários.
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ResponderExcluirResposta do meu amigo Paulo Dallagnol ao meu comentário, enviada para o meu e-mail (muito boa):
ResponderExcluir"Faz sentido, e concordo contigo quanto ao questionamento do Kierkegaard, e completo a tua idéia: a contraposição entre a essência do todo ("essencialismo") ou a existência de cada ser em particular - e aqui incluo o termo "existencialismo". Daí porque ele é considerado um dos maiores filósofos existencialistas - e base teórica-filosófica do próprio existencialismo como "doutrina".
Lembro que durante o intercâmbio eu comecei a me interessar por Nietzsche e a minha professora de Inglês/Humanidades da High School imprimiu uns textos da então incipiente internet sobre o Kierkegaard.
Todos estamos presos nessa roda da vida, my friend. Não acho que os antidepressivos sejam a única solução, mas sim a solução precognizada pelo "sistema" capitalista-consumista massificado, que busca entorpecer a capacidade de reflexão. E quando saímos desse condicionamento, ou ele não é suficiente para nos manter entorpecidos, surge a angústia.
Também não acho que os antidepressivos sejam inerentemente ruins ou sejam apenas aplicados nesses casos. Filosoficamente, pode até ser, mas, na prática, sabemos que bioquimicamente podem surgir, pelas mais diversas razões, desequilíbrios nos neurotransmissores que podem desencadear uma depressão. Há grupos que estão, inclusive, mais predispostos a isso do que outros, como é o caso dos pobres mortais que sofremos de enxaqueca...
No caso de pessoas inteligentes, autônomas, independentes e críticas, enfim, "free spirits" ou "free thinkers" como você, acho que a angústia será uma companheira fiel, até a morte. O que se pode fazer é buscar certo alívio exatamente nisso, na reflexão a partir da percepção desse condicionamento."